É incoerente ser de esquerda num mundo capitalista?

Algumas pessoas dizem, com certa indignação, que eu sou incoerente por ser de esquerda (anarquista, mais especificamente) vivendo num país capitalista. Isso porque, segundo eles, eu cobro dinheiro pelo meu trabalho ao invés de fazê-lo de graça para os outros. Sim, sou anarquista lá no fundo do coração e, sim, cobro pela minha mão de obra. E aí segue a indignação dessa gente: "ora, mas onde já se viu um esquerdista, comunista ou anarquista ser ganancioso e gostar de ganhar dinheiro?" E prosseguem: "Por que não dá seu salário todo para os pobres, seu comuna safado?", ou: "Por que não vai trabalhar de graça num gulag?". Mas se você prestar um pouco de atenção, verá que não há qualquer contradição em ser de esquerda e ganhar dinheiro com seu trabalho. Até porque, não há escolha além disso dentro do capitalismo; do contrário, seria trabalho escravo. E, sim, se eu pudesse, estaria, sim, trabalhando de graça. Não em um gulag e não numa senzala: mas num mundo livre.
Achou absurdo? Explico melhor a seguir.

O grande problema é que eu vivo num país capitalista e num mundo onde o capitalismo predomina na grande maioria das nações. Eu não tenho como me isolar do mundo e viver nas montanhas afastado da civilização por ser anarquista. Infelizmente, o capitalismo obriga todos nós a trabalharmos não por amor ao que fazemos ou por satisfação pessoal, mas por dinheiro: pela sobrevivência.
Temos que pagar tudo no capitalismo: escola, hospital, casa, comida, segurança, água, lazer e até remédios. Não é possível pagar tudo isso se você não tem uma remuneração. Ou você aceita e obedece as regras do capitalismo, ou morre de fome. É como uma ditadura do dinheiro. Se eu pudesse, estaria trabalhando de graça apenas pelo bem estar das pessoas e da sociedade, fazendo exclusivamente trabalhos voluntários. Eu trabalharia para fazer as pessoas felizes – e não para arrancar dinheiro delas e usá-lo para pagar minhas contas. Se vivêssemos numa sociedade onde pelo menos o Estado se encarregasse de cuidar das pessoas e de nos dar o básico, aí, sim, eu poderia trabalhar de graça. Mas isso não é possível no capitalismo. No capitalismo prevalece o egoísmo, a ganância, o individualismo, a mercantilização, a exclusão, a desigualdade. E é por isso que eu tanto protesto contra o capitalismo: porque eu não sou feliz neste sistema. Aqui somos escravos do nosso próprio salário.

O mundo ideal seria um mundo sem Estado, sem propriedade privada dos meios de produção, sem classes sociais, sem fronteiras, sem forças armadas, sem dinheiro e sem nenhuma forma de opressão. Apesar do anarquismo ser o sistema ideal, é possível ter um mínimo de dignidade humana em versões menos 'radicais' de um sistema ideal, como o socialismo, o cooperativismo ou até mesmo uma social democracia fundamentada no keynesianismo. Mas como vivemos num país onde é cada um por si em busca do maior acúmulo de capital possível, a única coisa que nos resta é seguir as regras do sistema – sob protesto, claro. Eu jamais irei me calar diante das injustiças e da selvageria do sistema que mais matou pessoas no mundo: o capitalismo. Sei que é um trabalho de formiguinha conscientizar as pessoas sobre as falhas do sistema capitalista, mas um dia, pode ter certeza, que este sistema irá colapsar. A humanidade, cedo ou tarde, tomará consciência que o capitalismo é tão cruel e desumano quanto a escravidão. Uma consciência global sobre os males do capitalismo irá prevalecer no mundo e o capitalismo um dia há de acabar. E até lá não deixarei de sonhar e de protestar.