segunda-feira, 14 de junho de 2021

A Reinvenção do Amor: 20 anos correndo pelos campos (parte 1)

 

Em meados do ano 2000, eu criei uma história em quadrinhos chamada Sociedade do Rock. Naquele quadrinho que eu produzia à mão em formato de revista havia a história de várias bandas de rock fictícias brasileiras, tais como as famosas Highbreak (punk), Gardena (metal), Tequila 21 (pop rock), Wacas Malhadas (pop) e a Unno. Dessas bandas, a mais famosa e que protagonizava a história era justamente a Unno, que foi fundada na capital paulista inicialmente por quatro integrantes: Ellie (vocal), Tom Pelegrinni (vocal e guitarra), Panther (baixo) e Max (bateria). Posteriormente, a partir de 2003, o ex-vocalista da Wacas Malhadas e ex-jogador de futebol Klindo Kloid também entrou na banda. Como expliquei em outra postagem, a Unno foi uma banda fundada em 2000 que reunia os remanescentes das bandas DeterGente e Wacas Malhadas. Na história, a banda surgiu como um projeto ambicioso dos empresários e investidores Walter Mostarda, Christian Candelabro e Klindo Kloid. A ideia desses mecenas era de criar uma banda de pop rock com grande alcance e que trouxesse um bom retorno financeiro. Para isso, houve um investimento pesado em marketing, figurino, identidade visual e estratégia para se chegar ao sucesso a curto prazo. Mas algo inesperado aconteceu que acabou criando um diferencial histórico para a banda já no primeiro disco.

Integrantes da Unno: Panther, Pelegrinni, Klindo, Ellie e Max.

A história do primeiro disco
Durante o processo de criação das primeiras canções da Unno, o irmão caçula da vocalista e guitarrista da banda, a Ellie, precisou de uma doação de medula óssea para sobreviver devido a uma leucemia. E isso causou uma mudança importante nos rumos da história da banda, porque, num ato de solidariedade dos demais integrantes do conjunto, ficou decidido que boa parte das canções do primeiro disco passariam a se focar na ideia e no estímulo à doação. E não apenas na doação de medula óssea, mas na doação de sangue, de órgãos, de leite materno, de alimentos, de cabelo e de tudo mais que as pessoas pudessem doar. A liberdade, a solidariedade, a generosidade e o altruísmo foram os temas centrais – ou os "fios condutores" – do primeiro disco que recebeu o nome de A Reinvenção do Amor. E essa ideia central da solidariedade caiu como uma luva, porque ela conectou os fãs, outras bandas e até mesmo pessoas que nem curtiam o som da Unno em um grande gesto de solidariedade para que as pessoas se doassem. Havia uma razão maior e mais forte por trás canções que movia as pessoas. A música era apenas uma maneira de manter a causa viva. Esse acontecimento foi crucial para o sucesso posterior da Unno.

Capa do álbum de soltura da banda: correndo pelos campos.

O álbum A Reinvenção do Amor, lançado oficialmente em 15 março de 2001 pela gravadora Pop Records, tinha músicas que eram sequências cronológicas umas da outras e, em algumas faixas, eram cantadas pelos mesmos personagens de canções anteriores. As progressões harmônicas parecidas entre si eram uma espécie de 'DNA musical' entre as músicas que faziam parte de uma mesma família e de uma mesma história. O primeiro álbum - que inicia com a frase simbólica (expressa na capa do disco) "Eu vou correr pelos campos" da música Infância Serena - foi produzido com o intuito de despertar as emoções das pessoas. A ideia é que você se sentisse tocado por cada uma das músicas. Afinal, se as canções não fossem capazes de mudar a sua forma de pensar ou de mexer com seus sentimentos, então essas canções não possuíam diferencial algum: seriam só músicas que desperdiçaram tempo útil da sua vida. Músicas boas precisam te marcar, adicionar algo novo, de te tornar um pouco melhor do que você era antes de escutá-las. Para se ter uma ideia da proporção que o projeto musical ganhou, nos shows da Unno era comum ver gente que cantava chorando, que ficava em transe, que exprimia uma felicidade transcendental no olhar. Não foi à toa que chegou a existir um certo grau de messianismo com relação à banda. A Unno virou uma espécie de seita para alguns fãs. Ou como disse certa vez Panther, o baixista da banda, sobre este disco:

"As pessoas devem se identificar com as histórias das músicas, se sentir emocionadas com elas e querer ouvir as canções mais de uma vez. Dar um pouco de escapismo, de esperança, de prazer e conforto: é esse o ponto central do primeiro disco."

A atmosfera inocente, pueril e florida marcou o primeiro disco.

Quem escuta o disco do início ao fim sente que ele é uma mistura de sonho, escapismo e nostalgia inseridos numa espécie de ciclo que vai da infância à velhice. A ideia de correr pelos campos como hino à liberdade diante de uma realidade opressora virou um bordão. A simbologia com flores na arte do álbum, nos clipes e nas músicas é uma referência à primavera, à infância, à inocência, ao início de um grande ciclo. O nome do álbum inicialmente era para ser "Inocência", mas ficou mais poético e adequado com a ideia central nomeá-lo para "A reinvenção do amor". Várias artes conceituais foram traçadas na produção inicial do encarte com brainstormings que duravam vários dias, incluindo elementos cinestésicos que apareceriam no encarte, tais como perfume de rosas, texturas em alto-relevo, hologramas de camadas e até um óculos 3D para visualização de anáglifos. Mas como tudo isso encareceria demais o disco, acharam melhor usar apenas efeitos 3D básicos no encarte com estereogramas (estilo o livro Olho Mágico). Nos encartes foram incluídos, a pedidos do futuro integrante Klindo Kloid, cifras junto com as letras das músicas para ajudar quem tocava violão. Sobre as músicas, algumas citações dos personagens as descrevem bem:

"O que eu acho incrível em algumas músicas é que elas transmitem sensações diferentes dependendo da fase da vida em que você as ouve. Quando você escuta uma determinada música da banda durante a adolescência, você tem uma sensação x. Quando você escuta a mesma música já adulto, a sensação é y. E quando você é idoso, percebe a canção de maneira z. Canções feitas em 'camadas' normalmente causam essa sensação." (Tom Pelegrinni, vocalista e guitarrista)

"Queríamos escrever canções que marcassem positivamente a vida das pessoas. Que elas pudessem dizer 'essa é a música da minha vida.'" (Ellie, vocalista e guitarrista)

Esse disco era para ter saído com umas 20 músicas, mas no final saíram apenas 15 (com uma secreta). Várias foram cortadas por não se encaixarem na proposta do álbum ou simplesmente por serem canções mais "fracas". Isso porque o álbum tem canções que falam do abandono dos idosos, da dor dos pais que perderam seus filhos, da sensação de prisão das crianças que estão internadas em hospitais e de gente que está precisando de doação de órgãos. Canções sobre violência doméstica e luta por direitos de minorias, apesar de importantes, não estariam em consonância com o fio condutor da Reinvenção do Amor. Além disso, a gravadora queria um som mais pop, que atingisse o maior número possível de pessoas.

Claro que nem tudo foram flores. O primeiro disco foi criticado por muitas razões: por repetir a mesma progressão harmônica em várias músicas, por ter muito apelo emocional, por ter refrões "pegajosos", por ter um som muito "cru", por terem abandonado as causas políticas das bandas antecessoras, por terem plagiado outros artistas e até mesmo por terem se aproveitado para capitalizar em cima do sofrimento das pessoas exemplificadas nas canções. 

A solidariedade com as crianças tornou o disco imortal.

Muito além da música
O comprometimento com a causa solidária foi além das letras e acordes. Os integrantes da banda visitavam fãs, asilos, hospitais, orfanatos, escolas e faziam shows beneficentes. Eles criaram uma cena musical que começou em São Paulo e se estendeu por todo o Brasil. Várias bandas, cantores e artistas de outros estilos musicais abraçaram a causa da solidariedade e da doação. E unir as pessoas através da generosidade foi um gesto que trouxe bons frutos posteriormente. A quantidade de doadores e de vidas salvas graças às canções solidárias daquela cena musical preservou muitas vidas e mudou a história de muitos brasileiros. Diferentemente dos dias atuais, foi como se uma onda gigantesca de solidariedade tivesse varrido o país inteiro. Um fato marcante na história foi quando um fã abraçou Pelegrini anos após o lançamento do primeiro disco para agradecer por ter recebido uma doação de fígado e por está vivo graças às canções do primeiro disco que motivaram o seu doador.

Além da solidariedade e da doação, a banda também defendia outras bandeiras, como a defesa das minorias, dos trabalhadores e dos mais fragilizados – temas que foram explorados de maneira mais enfática nos discos seguintes.

É bom que se diga que a Unno não fez sucesso por acaso ou por ser uma banda tecnicamente boa, mas principalmente pelo trabalho de base que fez ao longo dos anos com os fãs. Eles trabalham duro com divulgação, com criação de um figurino próprio, com planejamento estratégico, com divisão de trabalho, com marketing, com a busca de um diferencial e com o envolvimento em torno de uma causa nobre que conquistou o coração das pessoas. Eles preparam bem o terreno antes de lançar o primeiro disco. Tudo girou inicialmente em torno daquela ideia central de se doar. Tom Pelegrini disse certa vez que seu trabalho era dar para as pessoas aquilo que elas queriam ouvir, era colocar sorrisos nos rostos das pessoas através de canções com as quais elas se identificassem e que falassem sobre suas vidas. Então a banda abraçou o seu público alvo e fez um projeto multiartistico para atender à demanda desse público sempre com foco no objetivo central que era a solidariedade.


Como hoje, 14 de junho, é o Dia Internacional do Doador de Sangue, achei importante falar sobre este disco fictício que é um hino em homenagem à doação e à liberdade. Tem mais coisas para falar sobre ele, mas para essa postagem não ficar longa demais, resolvi dividi-la em duas partes. Na próxima (link dela aqui), vou abordar melhor sobre as canções deste álbum inesquecível.

Namastê!

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