segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Reflexões sobre a guerra 1 - Memórias de um sobrevivente


Não acredito em reencarnação, mas, se de fato ela existir, tenho a impressão que já fui um soldado que combateu em alguma guerra no passado. Afirmo isso porque sempre tive, desde criança, uns déjà vus inexplicáveis envolvendo cenas de guerra. Entretanto, independentemente desses déjà vus bélicos serem algo espiritual ou mera alucinação do meu cérebro, eles acabaram me servindo de inspiração para escrever diversos poemas sobre o assunto. O interessante é que muitos desses meus poemas relatam justamente o sentimento de angústia e mal-estar que me assolavam quando eu tinha esses estranhos déjà vus. O ponto em comum entre todos os poemas que escrevi sobre este tema está no fato de que a guerra sempre é vista como uma das invenções mais estúpidas da raça humana, porque numa guerra nunca há vencedores: todos saem perdendo. Talvez daí tenha nascido a minha postura pacifista e diplomata que carrego até hoje com tanta convicção.

Enfim, ao invés de escrever um post com minhas reflexões pessoais sobre a guerra, eu preferi publicar três dos meus melhores poemas sobre o assunto, cada um em um post, onde eu tento mostrar porque a diplomacia é sempre melhor que a guerra. O primeiro desses poemas chama-se Memórias de um Sobrevivente. Ele, assim como os demais, é fictício e relativamente extenso, mas é um poema conciso, escrito quase em prosa, relatando o ponto de vista de um combatente que deixou as suas recordações escritas num diário. O poema segue em azul abaixo. Para os que curtem poesia, boa leitura.


Memórias de um Sobrevivente

Não sei se um dia
Alguém lerá este diário,
Mas se alguém o encontrar
E conseguir entender
Minhas letras rabiscadas,
Peço para que ensinem a seus filhos
A nunca promoverem uma guerra,
Porque ela destrói
Aquilo de mais belo que Deus criou:
A vida.

Em um dia qualquer
Durante a campanha de nossas tropas,
Encontrei este caderno entre os escombros.
Então eu o tomei como um diário
Logo ele acabou se tornando um amigo,
O único com quem eu podia
Desabafar e dividir as minhas angústias.

Eu não me recordo bem como foram
Meus primeiros dias nesse conflito.
Lembro, apenas, que no começo
Eu sentia um mal-estar constante.
Lembro que eu vomitava
Sobre os pedaços de seres humanos
Espalhados em mares de sangue sem fim.
Agora, não.
As náuseas se foram
Junto com o lado humano
Que acho que ainda havia dentro de mim.
Descobri sem querer
Que a raiva é mais útil que o desespero.

Há uns cinco dias foi terrível.
Eu estava queimando de febre
Em plena frente de combate.
E aquela chuva gelada
Mais parecia chumbo derretido
Salpicando nas minhas costas.
E para piorar,
É que entre o ruim e o pior,
O pior sempre acabava acontecendo.

Bah! Vida maldita!
Será que esse sofrimento tem fim?
Eu me pergunto todos os dias
Quanto tempo mais
Ainda posso agüentar esse tormento.

Acho que desaprendi a sorrir.
No começo a gente sente muito ódio,
Depois, muita depressão.
E se a morte não nos pegar,
Esse ciclo fica se repetindo:
Ódio, depressão, ódio, depressão...

Por quê?
Por que quando as coisas
Mais precisam dar certo,
Elas sempre dão errado?
Estou exausto
De ver tantas pessoas mortas,
Tantos corpos empilhados
E tanto sangue derramado.
Se Deus deu inteligência ao homem,
Então como explicar esse genocídio?
Eu queria entender o sentido da vida,
Se é que a vida tem algum sentido.

Ontem fiz aniversário,
Mas ninguém sabe,
Ninguém quis saber,
E eu nem sei por que
Estou pensando nessa idiotice.
O que querer?
Presentes? Parabéns? Felicitações?
A felicidade é uma palavra extinta
Do meu desenxabido vocabulário.

Eu não consigo me sentir mais humano.
Às vezes não consigo
Nem mesmo me sentir vivo.
E o maior paradoxo é esse:
É que mesmo vivo,
Eu me sinto morto.

Desde pequeno eu aprendi
Que os homens não choram,
Mas quando eu me sinto
Um animal desolado,
Minha fraqueza se torna mais forte.
Penso até que isso seja bom,
Pois as lágrimas fazem
Com que eu me sinta mais humano.

Não há nada bonito ou construtivo
Em uma guerra.
Aqui estamos sempre no limite
Físico e psicológico,
Sentindo-nos um farrapo
Imundo, ferido, esfomeado e cansado.
E quando os nossos limites
São ultrapassados,
Aí vem a loucura.
Por isso,
Muitos dos meus compatriotas
Estavam enlouquecendo.
E eu também, eu acho.

Certo dia, quando eu estava estourando
As bolhas dos meus calcanhares,
Tive a nítida impressão
De ter escutado a voz da minha mãe
Chamando o meu nome.
A parte mais difícil para um combatente
É a de tentar manter a sanidade mental.

Vez por outra,
Nos raros momentos de descanso,
Converso umas bobagens
Com alguns colegas
E noto que a frivolidade
Diminui o medo e a ansiedade,
Mas não traz conforto ou prazer.
Aliás, o prazer é uma sensação distante
Que se limita a uma tragada
Num cigarro sem marca.

Eu não tenho medo de morrer.
A morte não é uma preocupação,
A morte é um conforto.
Todo mundo tem que morrer um dia,
É por isso que eu não ligo para morte.
Pelo menos eu vou morrer
Fazendo a coisa certa,
Acreditando em algum ideal
E defendendo a minha pátria.
Se bem que eu não gostaria de morrer
Sem ter feito tudo que gostaria na vida.

Só queria pensar que tudo isso acabou
E voltar de vez para casa.
O que eu mais queria agora?
Era ter coragem de me olhar no espelho,
Comer uns cinqüenta quilos de chocolate,
Dormir por três meses seguidos,
Passar o dia inteiro relembrando
O doce prazer de amar
E olhar para as estrelas cadentes no céu
Sem pensar que são balas traçantes.

Eu imagino quantas famílias
Já perderam seus entes queridos
E o que todos nós temos a ganhar
Com os frutos podres dessa guerra.
Eu me sinto um mero peão
Avançando cegamente num tabuleiro,
Esperando bravamente a próxima ordem,
Seja para matar ou para morrer.

Acho que a cena mais dura
Que presenciei nesse conflito
Foi quando vi os civis
Investindo contra nós.
Eu não estava preparado
Para matar crianças.
Mas o que está em jogo aqui
Não é o preparo, é a sobrevivência.
Antes de sermos soldados
Somos, sobretudo, seres humanos.

Todos os dias peço perdão a Deus
Por ter sido tão atroz
Mas era esse o meu dever.
Ainda que a culpa pese uma tonelada
Tenho de ser leal ao meu brasão.

A missão final da nossa tropa
Foi de proteger a fronteira.
Embora tivéssemos uma base forte,
Temíamos que nossos inimigos
Usassem armas químicas.
Eu só pensava na minha mãe
E nos cuidados e nos carinhos
Que ela tinha por mim.
Eu só queria abraçar a mamãe
Mais uma vez
E dizê-la o quanto
Ela foi importante para mim.

Aquela última batalha foi a mais sangrenta
Que presenciei em toda a guerra.
Os inimigos nos atacavam por todos os lados
Com tanques blindados, artilharia pesada 
E uma poderosa infantaria motorizada.
Saraivadas de tiros e explosões delirantes
Tornavam tudo confuso e sem sentido.
Lembro de sentir minha farda encharcada,
De tanto sangue alheio que jorrava.

Os gritos aterrorizantes
E todas aquelas vísceras expostas
Chegavam a dar tontura.
E acho que foi numa dessas
Que algo explodiu perto de mim.

Quando acordei na enfermaria
Não sentia mais minhas pernas
Nem entendia de onde vinha
Aquele zumbido alto nos meus ouvidos.
Quando devolveram o meu diário
Eu logo voltei a escrever
Sobre as pautas ensangüentadas
Tudo aquilo que ainda me recordava.

...

Essa guerra terminou,
Mas muitas outras continuam
E muitas outras ainda virão.
Mesmo com o fim da guerra,
Eu guardei comigo, por todos esses anos,
Este meu velho diário.
Escondi o caderno numa gaveta
Por não sentir mais vontade de escrever.
Mas um dia pensei em deixar um recado
Para as futuras gerações.
Com o meu velho diário de volta à mão,
Eu decidi terminá-lo de escrever.

Como sobrevivente,
Hoje eu posso dizer que
Ninguém, jamais,
Volta vivo de uma guerra.
Ou você volta morto de corpo,
Ou você volta morto de alma.
E não estou falando isso
Só por ter perdido as minhas pernas
E a minha audição.
Mas por ter perdido a vontade de viver.

Alguns sobreviventes
Têm a sorte de renascer
Eu acho que morri e renasci
Por várias vezes.
E não foi só naquela guerra.
É como se cada dia da minha vida
Fosse uma nova chance que Deus me dá
Para que eu possa renascer
E buscar o meu melhor.

A cura para guerra é o amor.
Foi ele que me fez renascer
Por todas essas vezes.
Não sei se posso
Generalizar isso para todos,
Mas foi assim que aprendi
Que um gesto de perdão
Pode funcionar melhor
Que um tiro de fuzil.
- Muita paz em vossos corações.

A seguir, os links para os demais posts dessa série de poemas sobre a guerra:

Reflexões sobre a guerra 1 - Memórias de um sobrevivente
Reflexões sobre a guerra 2 - Diário de Guerra
Reflexões sobre a guerra 3 - A Última Noite de um Homem

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