quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Reflexões sobre a guerra 3 - A Última Noite de um Homem


Para terminar a trilogia das minhas poesias sobre a guerra, apresento então o poema A Última Noite de um Homem. Talvez este poema - escrito em versos brancos e livres - seja o mais profundo de todos por mostrar como uma guerra destrói o lado humano das pessoas e também como, antagonicamente, o amor é único sentimento capaz de nos ressuscitar da nossa 'morte em vida'. Assim como os outros poemas, ele é um protesto contra a violência e ao mesmo tempo uma forma de dizer que a felicidade pode estar nos pequenos gestos, especialmente naqueles que menos prestamos atenção.
Boa leitura.


A Última Noite de um Homem

Era noite.
A cortina de vapor
Descobria sensualmente
A lua cheia no céu.
Os olhos da minha mulher amada
Reluziam incessantemente
E os nossos lábios se tocaram
Como se fosse a última vez.
Transcendíamos ao infinito
Cobertos por um manto de ternura
Que enlaçava nossas almas,
Equilibrando a mais sublime
Equação do amor.

Durante a despedida eu notei
Que suas lágrimas eram como
Cascatas abundantes
De uma fonte interminável
Que percorria os rios da alma.
Tantas promessas, tantos sonhos,
Tantas juras de amor em vão...
Aos prantos
Ela suplicava por uma promessa
Eu somente lhe disse:
- Adeus, querida.
Acho que, naquele instante,
Eu havia a perdido para sempre.

Quepe, farda e fuzil.
Em marcha deixei minha pátria,
Vendo a mesma despedida se repetir
Entre meus valentes irmãos
Que choravam sob o hino nacional.

Diante de um estandarte hasteado
Juramos honrar
As lágrimas dos heróis patriotas.

Dias após,
Meus pés pisavam em terras frias.
Um calafrio de medo e insegurança
Era trazido pela brisa crua e gelada.
Diante daquela atmosfera de chumbo,
Meus olhos relatavam
A mais pura selvageria do mundo.
Cadáveres estraçalhados
Saltavam entre os escombros
E trincheiras de corpos humanos
Denotavam  o ar necrótico
Daquele ambiente repugnante.

A carnificina já durava dias
E meu corpo implorava
Por um longo descanso.
Cadáveres desmembrados,
Carbonizados e desfigurados
Eram empurrados em sacos pretos.
Médicos suturavam feridas horrendas,
Fuçando o nauseante acampamento
Atrás da escassa morfina.

Tínhamos algumas míseras horas
Para tentar dormir.
Quando tentávamos, não conseguíamos
E quando pensávamos ter conseguido,
O pesadelo nos perseguia.

Nossa única refeição do dia
Era uma insípida ração enlatada
Ou uma carne crua que fedia
Mais que o perfume dos defuntos.

Aqui, nesse inferno,
A saciedade
Era uma sensação desconhecida.
Além de toda dor e desconforto,
Ainda tinha que aturar
As ordens do sargento mandão
E de todos que o sobrepujavam.

Esses animais desumanos
Tratavam as mulheres da pátria alheia
Como se fossem cadelas vira-latas.
Eles riam como hienas pervertidas
De suas monstruosidades.

Ah! Há quanto tempo
Não sinto o calor de uma cama.
Um dia achei um colchão velho
E lembrei da minha querida mulher...
Como as coisas teriam sido diferentes
Se eu não tivesse me alistado.

Diante de todo horror e brutalidade,
Minha única certeza
É de que não existia felicidade
E que esse mundo era um inferno
Cheio de ódio e desgraças.
O ser humano era um câncer
De si mesmo.

Sem ver mais moral ou ética
Não tive mais discernimento
Para diferenciar
O certo do errado.
Tudo que aprendi de certo
Era errado
E tudo que julgava ser errado
Era a própria lei.

Já na iminência da insanidade,
Fui metamorfoseado numa pedra.
Tornei-me duro e frio
Como uma máquina de matar.
Não tinha mais sentimentos.
Não conseguia mais sentir
Ódio dos meus inimigos,
Nem compaixão
Pelas crianças mutiladas.
E no meio desse estado de demência,
Sentia como se tudo ao meu redor
Estivesse me dando adeus.

Em mais uma incursão
Eu sentia novamente
Que o fim não parecia distante.
Eu juro que vi a morte
Em vários lugares,
Vinda de várias direções.
Mas armei-me de bravura ao lembrar
Que deveríamos honrar nossas fardas,
Nossa pátria
E nossos generais.

No meio da fuzilaria sem fim
Eu tropeçava horrorizado
Nos meus colegas trucidados.
Eles caiam um a um
Em um massacre implacável.

O cheiro de carne queimada e os gritos de horror
Deixavam-me atônito.
E, em meio ao inexaurível desfile
De projéteis no ar,
Um metal incandescente
Atravessou a minha carne.

Quando vi meu tórax ensangüentado
Já nem sentia mais dor.
Caído no chão
Como um porco abatido,
Eu olhava para a lua reluzente no céu.
Ela brilhava soberana
Como na última noite
Que estive com a minha querida.
Eu não mais ouvia
O que os meus colegas diziam
E então fechei os olhos
E tive um belo sonho.

Em uma linda noite,
Eu valsava com a minha querida
Ao som de uma alegre
Seresta de amor.
Eu via a lua brilhar
Via também homens, mulheres,
Velhos e crianças,
Todos sorrindo felizes
Num imenso salão.
Então ali tive todo tempo do mundo
Para dizer tudo que eu sempre quis
À minha adorável mulher.

Eu lhe disse umas palavras doces
E entreguei-lhe uma bela rosa
Que brotava num canteiro, dizendo:
- Eu te amo, querida.

Foi ali que percebi
Que a vida pode ser bela
E que existem, apesar de tudo,
Sentimentos generosos
De bondade e respeito
Que engrandecem os homens.

Sei que não posso voltar no tempo
E sinto que a chama da minha vida
Está prestes a se apagar.
Mas aqui, no meu leito de morte,
Aprendi a lição que tanto teimei
Em não aprender.
A valorizar os pequenos detalhes
E cada precioso instante
Que a vida nos oferece.

Descobri que a beleza da vida
Está nos gestos mais simples,
Seja num pedido sincero de desculpa,
No sorriso de uma criança
Ou nas lágrimas de felicidade
De uma mãe que vê seu filho nascer.
Também aprendi
A não ver mais a felicidade
Como a sombra de uma utopia.

Abri meus olhos mais uma vez
E vi a lua se apagar aos poucos,
Mas eu estava realizado em saber
O quanto a vida é bela.


A seguir, os links para os demais posts dessa série de poemas sobre a guerra:

Reflexões sobre a guerra 1 - Memórias de um sobrevivente
Reflexões sobre a guerra 2 - Diário de Guerra
Reflexões sobre a guerra 3 - A Última Noite de um Homem

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