terça-feira, 30 de novembro de 2021

O dia que senti inveja de um catador


Que a inveja é um sentimento horroroso, isso todo mundo sabe. Mas há certas situações em que a inveja acaba sendo algo bom. Digo isso porque, pela primeira vez na vida, senti inveja de alguém muito mais f#dido na vida do que eu. E isso começou a mudar a minha vida para melhor.

Numa reportagem local que passou na tevê aberta da minha cidade, vi uma matéria que mostrava a história de um catador. Putz, o cara vivia num barraco minúsculo de uma palafita sem saneamento básico e sem energia elétrica. Os únicos bens de consumo que o sujeito tinha eram um colchonete velho onde ele dormia, um radinho de pilha, um balde de mijo e uma bíblia que ele nem lia por ser analfabeto. Daí que você se pergunta como alguém como eu que tenho casa própria, energia elétrica, saneamento básico, internet, plano de saúde, ensino superior completo e moro num bairro de classe média alta posso invejar um sujeito desse. E a resposta é simples: eu senti inveja da felicidade que transbordava daquele homem. Quando o repórter perguntou se ele se considerava feliz, o homem respondeu com convicção e brilho nos olhos: "Sim! Sou muito feliz." Ele se dizia feliz porque tinha muita fé em Deus e conseguia ajudar outras pessoas em situação pior que a dele. A felicidade daquele homem foi uma coisa que eu não sei explicar como pode existir. Como alguém sem p#rra nenhuma pode ser tão feliz daquele jeito?


Acho que foi por coisas assim que entrei em crise existencial após perder minha fé quando tinha meus 18 anos de idade. Ser ateu é uma merd#, porque não temos mais a ilusão de uma felicidade que transcende esta vida. Mas não foi só por minha falta de crença em deuses que lamentei ao assistir a reportagem. Eu lamentei porque mesmo tendo muito mais qualidade de vida que aquele simples catador, eu não consigo sentir aquela felicidade irradiante do sujeito. Foi graças a isso que comecei a refletir seriamente sobre muita coisa inútil que carrego na vida e que nunca serviu para me fazer mais feliz. Desde então, tenho cada vez mais me tornado um simpatizante do minimalismo. Futuramente, pretendo escrever um artigo tratando mais detalhadamente sobre como todos nós compramos e adquirimos coisas irrelevantes que só servem para entulhar a casa, dar prejuízo e alimentar um consumismo frenético que não serve para bulhufas. E esse pensamento minimalista tem me tornado um sujeito paradoxalmente mais feliz. Afinal, não precisamos TER, precisamos SER.

Enfim, isso me lembrou daquele poema do escritor Machado de Assis que mostra como o ciclo de inveja é curioso entre os seres humanos:

Círculo Vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto o vaga-lume:
- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela!

Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
- Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!

Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
- Misera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume!

Mas o sol, inclinando a rútila capela:
- Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfada-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?

(Machado de Assis)

0 comentários:

Postar um comentário