terça-feira, 7 de junho de 2022

Ideias Profanas: o maior disco que jamais existiu


Nos dois últimos posts sobre a banda fictícia Unno, eu fiz uma abordagem geral sobre como o primeiro disco dessa banda, intitulado de A Reinvenção do Amor, lançado em 2001, abalou com as estruturas da série de quadrinhos Sociedade do Rock. Como foi dito, dentro do contexto da história, aquele disco – apesar de ter a intenção inicial de estimular as pessoas a fazerem doações para salvarem vidas – acabou se tornando uma espécie de 'Cavalo de Troia' para furar a bolha da indústria fonográfica e do mercado musical mainstream. Os mecenas da banda e os produtores queriam um álbum de estreia comercial que tocasse bastante nas rádios e vendesse muitos discos. Por conta disso, os músicos da Unno que eram, em sua maioria, ex-integrantes da banda underground de hard/punk rock DeterGente, se "romantizaram" tanto nas canções quanto nas atitudes, promovendo um apaziguamento nas letras, no figurino e nos discursos em relação ao que eles eram na antiga banda de punk rock. A Unno então ganhou uma identidade própria e tivemos uma temática envolvendo doação e empatia para promover a generosidade naquele primeiro disco. Canções pops falando sobre amor, doação, filantropia, generosidade, altruísmo e liberdade com forte apelo emocional foram suficientes para colocar a banda em evidência e alavancar a venda do álbum. Não foi à toa que o primeiro disco foi o mais vendido da Unno e os jogou com gosto no meio mainstream. Porém, essa imagem mais inocente da Unno durou apenas três anos até que os caras viraram a chave e lançaram o lendário segundo disco, o Ideias Profanas, que entrou para história como sendo um dos melhores discos de rock cantados em português já produzidos.

O quinteto da Unno não estava de brincadeira dessa vez.

O Ideias Profanas, disco de hard rock lançado em 2004, foi o oposto do primeiro disco, porque ele era um disco onde a banda cantava a sua verdade musical. O protesto, a rebeldia e a agressividade que vieram no segundo disco mudaram a banda da água para o vinho. Saíram os teclados com reverb do primeiro álbum e entraram as guitarras com distorção no segundo. Isso coincidiu com a entrada do vocalista Klindo Kloid e deu a sensação de que a banda do primeiro disco era uma e a do segundo disco era outra completamente diferente. Essa mudança deixou muitos fãs confusos e criou uma ideia maniqueísta sobre a banda, tanto é que o título do segundo álbum se chama Ideias Profanas e meio que entra em conflito com o primeiro, que tinha aquela aura de pureza e bondade cristã mesclada com um pouco de hipocrisia.

Dito isso, as consequências dessa mudança radical na banda foram evidentes. Primeiro que os caras romperam com a gravadora do primeiro disco, a gigante Pop Records. A gravadora queria uma "Reinvenção do Amor 2", mas a banda queria voltar às suas origens e tocar hard rock com letras que desafiavam o sistema. Outra consequência foi que muitos fãs do primeiro disco simplesmente detestaram esse segundo por o acharem sujo, subversivo e esquerdista. E a banda teve que lidar com dois tipos de fãs: os saudosistas sonhadores do primeiro disco e os revolucionários progressistas do segundo.

Unno em 2004 brincando de quebrar tudo.

O fator Klindo Kloid
Plínio Kalanin Kloid, mais conhecido como Klindo, foi um dos personagens mais emblemáticos e controversos que já existiram. Ele é tão complicado e paradoxal que é até difícil de descrevê-lo. Filho do meio de uma família abastada paulistana, Klindo perdeu sua mãe quando ainda era criança. Seu pai, um empresário norte-americano, acabou sendo um pai ausente, portanto ele e seus irmãos foram criados pela avó num sítio da Baixada Santista. Por conta de uma série de mudanças bruscas em sua vida, ele virou um rebelde e acabou se tornando um sujeito totalmente antissistema. Cabeludo, baixinho e de voz estridente, ele foi um playboyzinho socialista durante boa parte da sua juventude, virando um liberal de direita após deixar a Unno e ir morar nos EUA. O cara tinha uma personalidade que beirava a bipolaridade, porque ora era agitado, brincalhão, alegre e falante; ora era introvertido, mal humorado, brigão e lacônico. 

Klindo em um anúncio das guitarras Vulcano.
 

Durante os seus quase cinquenta anos de vida, ele foi um pouco de tudo: revolucionário de boteco, jogador de futebol, músico, vocalista, mecenas, empresário e produtor musical. Klindo foi um dos mecenas do primeiro disco da Unno, mas, no fundo, ele queria mesmo era entrar na banda quando ela já estivesse fazendo sucesso. E foi exatamente isso que aconteceu. Como investidor, ele estava financiando a si mesmo, tanto que ele virou um integrante da banda somente depois do primeiro álbum ter sido lançado e feito sucesso. Quando ele deixou de ser um investidor e entrou como vocalista na banda durante a gravação do álbum Ideias Profanas, ele estava no auge do seu "esquerdismo". O cara era um progressista radical que simpatizava com as pautas identitárias e abominava o sistema capitalista. Isso casou perfeitamente com aquela nova fase da Unno que sempre foi progressista desde os tempos da DeterGente. O fato foi que a entrada de Klindo tornou a banda ainda mais radical no sentido político. E o resultado disso foram canções que chacoalharam as estruturas com um vocal poderoso, furioso e cheio de atitude. A maioria das canções do Ideias Profanas foi cantada por Klindo e ele, especialmente ao vivo, tinha uma presença de palco e um carisma incríveis. Não foi à toa que a imagem da banda passou a ser associada mais diretamente a ele do que aos demais integrantes. 

Klindo em sua versão Simpson.

Como nem tudo são flores, o baixinho cabeludo de voz estridente teve problemas com o alcoolismo, tinha um temperamento difícil que o rendeu várias brigas, era irresponsável, era extremamente mulherengo, casou-se três vezes, teve cinco filhos, chegou a ser preso por não pagar pensão alimentícia, foi expulso de um clube de futebol por indisciplina, teve a licença para dirigir cassada e respondeu a vários processos por injúria devido às incontáveis bobagens que falava. Esse comportamento desmiolado do Sr. Kloid foi, inclusive, um dos motivos que fez a banda entrar em declínio após esse álbum. O temperamento difícil do baixinho cabeludo rendeu muitas brigas com os demais integrantes da Unno, em especial com o baixista Panther que repreendia suas atitudes irresponsáveis e com quem dividia a liderança. Ellie (guitarra), Tom (guitarra, teclado) e Max (bateria), apesar da relação mais amigável com ele, também tinham seus desentendimentos. É bom que se diga que Klindo tinha um ego muito inflado e muitas vezes parecia um ditador dentro da banda. Tudo tinha que ser do jeito que ele queria e isso foi fonte de vários problemas que acabaram culminando na sua saída em 2009.

Os integrantes Klindo, Ellie, Tom, Panther e Hiroshi.

Sobre o disco
Se o Ideias Profanas tivesse sido um disco real, pode ter certeza que ele ficaria entre os dez melhores discos de rock brasileiro de todos os tempos. E ainda digo mais: se este disco tivesse sido cantado em inglês ao invés de português, possivelmente estaria entre um dos mais memoráveis da história do rock mundial. Ora, o disco é nitroglicerina pura: ele tem uma sonoridade agressiva, batidas fortes, solos furiosos, vocais rasgados, riffs inesquecíveis e refrões marcantes. É um disco mítico que mais parece uma coletânea de grandes sucessos. As letras, terrivelmente contemporâneas, trazem protestos contra o imperialismo, contra o sistema financeiro, contra o rentismo, contra o latifúndio, contra o genocídio de negros, contra o feminicídio e contra a homofobia. Ele fala das desgraças causadas pelo capitalismo, dos direitos dos animais, da liberação da maconha e critica o pensamento dogmático. O álbum é porrada do começo ao fim com canções que viraram hinos, com muitas batidas fortes, guitarras distorcidas, muito slap e gritos de guerra nos refrões. É um disco político, uma verdadeira bomba contra o sistema. A sonoridade é destoante dos outros álbuns por ser mais visceral, revoltada e agressiva. São canções com personalidade que marcaram a história da música e de uma geração. Não foi à toa que este foi o segundo disco mais vendido da banda (mesmo com os boicotes que sofreu) e top 10 entre os maiores discos brasileiros segundo a revista fictícia Rock´n Roll Brazil. 

Após romper com a gravadora Pop Records, a banda acabou produzindo boa parte do disco de forma independente no Estúdio Monolítico de São Paulo. A produção final foi feita nos EUA com a parceria com o músico e produtor norte-americano Johnny van Taylor, que era um grande amigo de Klindo. 

A capa do disco Ideias Profanas confundiu algumas pessoas por ser parecida com a capa de um disco de metal melódico. O que ajudou a aumentar a estranheza foi que nem o logotipo da banda aparecia na capa, que tinha um visual meio gótico com a dark angel.

Simbologia da dark angel estava na arte do disco.


Críticas

O disco recebeu críticas de tudo quando é jeito. Para se ter uma ideia do tormento que a banda enfrentou, muitos fãs do primeiro disco abandonaram a banda (chegando ao ponto de destruírem discos), as emissoras de tevê e rádios os boicotaram, eles ganharam o apelido pejorativo de "os comunistinhas", pastores evangélicos disseram que a banda servia ao capiroto e os capitalistas mais ferrenhos desceram a lenha via imprensa tradicional em cima do álbum. Até mesmo antigos aliados musicais da Unno, como algumas bandas de pop rock mais água com açúcar, disseram que os caras venderam a alma ao diabo. Isso sem falar das mentiras e teorias conspiratórias, como supostas frases satânicas que surgiam quando o disco era rodado ao contrário e a ridícula acusação de "racismo reverso" na faixa Palavras de Ordem. O maior problema do disco foi o fato dele não trazer nenhuma novidade a nível musical. O álbum traz uma postura revolucionária, mas inova muito pouco, chegando repetir um estilo de rock que já estava meio saturado na época. Enfim, a verdade é que o disco sobreviveu aos ataques e críticas e acabou se consolidando como um dos mais importantes da história. O Ideias Profanas, apesar das controvérsias que gerou, foi um disco feito para abalar as estruturas e fazer as pessoas pararem para pensar.

Cover frontal do álbum.

Faixas do álbum:
Vou apresentar as músicas do disco e comentar rapidamente sobre elas.

CD 2 - Ideias Profanas (2004)
1. O Rock Não Pode Morrer
2. Insurgência ao Capital
3. Vassalos do Império
4. A Mídia dos Patetas
5. Feminística
6. Identidade Impessoal
7. Juventude Revolucionária
8. Lixo Capitalista 
9. O Sonho de Mary
10. Terra Sem Lei
11. Estrada da Perdição 
12. Palavras de Ordem (Afrorrebellia)
13. A Estória de Eva e Adão
14. Cannabiana (Eva Livre)
15. Animais

Descrição de cada faixa:

1. O Rock Não Pode Morrer - A canção que abre o disco é um medley que passeia por vários estilos de rock, indo do rockabilly até o heavy metal. A letra serve para instigar os ouvintes a criarem a sua própria banda de rock.

2. Insurgência ao Capital - É uma das músicas mais poderosas do álbum. O capitalismo financeiro, a propriedade privada dos meios de produção, o rentismo plutocrata e as classes dominantes são alvos centrais dessa música. Tudo isso com muita distorção, powerchords, solos marcantes e vocal furioso. A música lembra um pouco das canções do Nirvana com momentos mais calmos alternados com partes mais raivosas, especialmente no refrão.

3. Vassalos do Império - Quem gosta de Rage Against The Machine sente claramente semelhança das letras ácidas da banda com a dessa música. Aqui trata-se de um protesto contra todo o caos causado pelos EUA no planeta, em especial no caso do Brasil, onde há críticas ardidas ao nosso entreguismo vira-lata.

4. A Mídia dos Patetas - Um disco que protesto que não ataca a imprensa corporativa não é um disco de protesto que se leve a sério. E essa música é porrada do começo ao fim contra a mídia burguesa ao som de um pandemônio de guitarras distorcidas. Para se ter uma ideia, chegou-se a usar mais de seis camadas de distorção em uma única guitarra para se chegar ao timbre carregado que permeia a canção. Essa faixa foi herança dos tempos de punk rock da antiga banda DeterGente. 

5. Feminística - Sabe aquelas histórias clichês de contos de fadas que mostram as mulheres como frágeis em seus castelos à espera do seu príncipe encantado? Essa canção conta a história de uma dessas princesas que se liberta de toda essa ilusão para lutar pelo que realmente importa: o direito de ser livre e combater a opressão que mantém as mulheres presas em suas torres da vida real. Essa é a canção mais feminista do disco.

6. Identidade Impessoal - Todo mundo já se sentiu preso a padrões de comportamento e regras sociais baseadas em puro preconceito. Essa canção é um protesto contra isso, contra as algemas invisíveis que nos mantém presos dentro de nós mesmos. A canção tem uma mixagem híbrida de música eletrônica que foi gravada com a ajuda do DJ Mister Boot alternada com um riff de guitarra cheio de overdrive e wah wah. O resultado foi bem interessante.

7. Juventude Revolucionária - Canção herdada da banda DeterGente que critica o sistema como um todo e traz soluções à esquerda para os nossos problemas sociais. Isso bastou para justificar o apelido de "os comunistinhas" para a Unno. A diferença para as demais é que esta é uma faixa acústica – o que não torna a canção nem um pouco "calma" por isso. Aliás, ela mostra como violões também podem soar bem agressivos em músicas de protesto.

8. Lixo Capitalista - Mais uma canção com pegada de punk rock atacando as mazelas do capitalismo (produtos descartáveis, consumismo, alimentos ruins, poluição, depressão, egoísmo, infelicidade). Aqui concluímos que nossa vida está um lixo por causa do capitalismo.

9. O Sonho de Mary - Esta canção conta a história de uma mulher que sofreu violência doméstica e conseguiu criar coragem para procurar ajuda e lutar por sua vida. É uma canção de protesto contra o feminicídio e a violência contra a mulher.

10. Terra Sem Lei - Mais uma pedrada em forma de música, só que dessa vez os focos dos ataques são o latifúndio, os ruralistas, os grileiros e tudo mais que ameace as florestas, os índios, o meio ambiente e a biodiversidade.

11. Estrada da Perdição - Imagine um ex-crente que se libertou do pensamento dogmático da religião e resolveu viver a vida livre de amarras, preconceitos, medos e culpas. Além disso, ela ataca os líderes religiosos pseudocristãos chamando-os de dogmáticos, fanáticos, violentos, autoritários e hipócritas. Apesar da metáfora do ateísmo como uma moto na estrada, essa canção ateia foi motivo de muita gente considerar a banda como sendo satânica.

12. Palavras de Ordem - Uma canção antirracista com muitas batidas fortes e cheia de gritos de guerra. Quer mais o quê para revoltar os reaças? Guitarras sujas, bateria insana, raiva, revolta e frustração são marcas registradas dessa faixa.

13. A Estória de Eva e Adão - Esta foi uma música feita em parceria com a banda Gametas Andróginos e tinha como objetivo apenas brincar, criando uma versão alternativa hilária da criação onde Adão não era hétero. Pronto, bastou isso para ultrajar os cristãos mais conservadores.

14. Cannabiana (Eva Livre) - Quer acabar com o tráfico de drogas? Que tal então legalizar geral? Pois é disso que se trata esta música. O destaque dela vai para o baixo que tem um riff de personalidade.

15. Animais - Para fechar este disco épico, nada melhor que uma música vegana furiosa cheia de fuzz, overdrive, wah-wah, percussão tribal, slap e um vocal estridente e intenso. O duelo de guitarras com solos rasgados mais parece dois felinos brigando ao som de tambores rufando. Nada melhor que lutar pelos direitos dos animais ao som de um rock n roll cru e visceral.

Por todas essas canções épicas acima é que eu considero este como sendo o disco mais representativo da Unno. Ele só conseguiu o devido destaque justamente pela banda ter furado a bolha da mídia e ter ficado conhecida antes graças ao primeiro disco. Do contrário, esta obra teria sido apenas mais um disco underground esquecido em um mundo que favorece músicos e bandas na base do jabá e do quem indica.

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