terça-feira, 12 de abril de 2016

A inocência dos liberais

Estado mínimo resumido numa charge

Vamos imaginar uma partida informal de futebol. Todos sabem que um jogo de futebol possui várias regras bem conhecidas que o caracterizam como esporte para que ele seja jogável. O responsável por aplicar as regras da partida é o árbitro. Agora imagine que durante essa partida, um grupo de torcedores esteja inconformado com o fato do seu time estar perdendo. A solução mais lógica para isso seria fazer substituições, mudar de tática, aumentar a pressão da torcida, dar mais dinâmica aos volantes, transformar os laterais em alas, marcar a saída de bola, etc. Só que ao invés de pensar nisso, esse grupo de torcedores começa a culpar a arbitragem pela derrota em andamento do time, dizendo que o árbitro é ladrão e que as regras do jogo são injustas. Eles acham que o juiz está marcando faltas demais contra o time deles, que a arbitragem não está deixando o jogo fluir e que os auxiliares só estão marcando impedimento contra o time deles. Então a solução "genial" desses torcedores revoltados é simplesmente a de mudar as regras do jogo. Há faltas demais contra o time deles? Então a falta deixa de ser uma regra, até porque o time que fazia mais faltas na partida era justamente o mais violento e o que também estava perdendo. Há impedimentos demais contra eles mesmo com o time adversário fazendo uma linha de impedimento disciplinada? Então tira o impedimento da regra também. Pronto: o jogo agora segue sem faltas e sem impedimentos. E aí eu te pergunto: você acha que o jogo ficou mais justo, com mais liberdade, menos regras e menos intervenção arbitrária?
Pois bem, o que se sucede após essa mudança de regras é uma verdadeira selvageria campal. A pancadaria come solta, os jogadores começam a se agredir e vários gols em posição de impedimento são marcados a favor do time que mudou as regras. O jogo acaba virando uma confusão devido à pancadaria generalizada depois que o árbitro parou de marcar as faltas e impedimentos. A torcida do time que foi desfavorecido com as mudanças invade o campo e entra na briga também. O resultado é que o jogo acaba sendo encerrado e anulado. Notavelmente, diminuir os poderes da arbitragem não deu certo.

Agora pegue o exemplo da partida de futebol acima e substitua o jogo pela economia, os jogadores pelas empresas privadas, a arbitragem pelo Estado e os torcedores que mudaram as regras pelos defensores do Estado mínimo. Pronto, não preciso mais dizer porque eu sou contra o liberalismo econômico.
A ideia do liberalismo econômico é parecida com a desse jogo de futebol onde o juiz teve o seu poder de arbitragem reduzido para ele "parar de roubar" e deixar a partida correr livre. Esse tipo de mudança favorece aos grandes, aos mais fortes, aos mais violentos e aos que precisam de mais liberdade para impor as suas próprias regras. Assim sendo, a famosa "piscina de tubarões" estaria formada. Capitalismo sem Estado não é capitalismo: é selvageria, massacre e uma versão piorada do feudalismo.
Mas vamos trocar em miúdos para entender o problema do liberalismo econômico na prática.

O neoliberalismo conduz a economia por caminhos perigosos

Explicando sem metáforas
O liberalismo econômico parte do princípio de que o Estado não deveria legislar ou controlar o mercado. O mercado deveria funcionar livremente com suas próprias regras, porque segundo a teoria de Adam Smith, a autorregulação do mercado ocorre naturalmente através da tal "mão invisível". Isso justificaria, portanto, a ideia do Estado mínimo, ou do Estado zero, como profetizam os anarcocapitalistas. Essa ideia do Estado mínimo não está errada do ponto de vista filosófico. O problema é que ela só funciona, de fato, se inserida em um contexto de microeconomias ou em realidades fantasiosas onde as pessoas e empresas tivessem um comportamento exemplar do ponto de vista ético. Isso porque do ponto de vista da macroeconomia, o livre mercado gera práticas como cartéis, monopólios, oligopólios, dumpings e trustes – práticas essas que destroem qualquer liberdade econômica. Não há liberdade econômica, do ponto de vista prático, sem uma participação forte do Estado. O Estado existe para proteger o próprio capitalismo, a propriedade privada e a concorrência. A crise de 1929 mostrou o que acontece quando o mercado é entregue ao laissez-faire. O que salvou os EUA da maior crise da história do capitalismo foi justamente o keynesianismo: a tal intervenção estatal que os liberais tanto abominam.

"Coerência" liberal

O que torna alguém liberal?
O número de liberais econômicos têm crescido de forma rápida e preocupante na internet. Isso ocorre basicamente por duas razões. A primeira é que a maioria dos usuários frequentes da internet são da classe média – e a classe média é a que paga mais impostos e ao mesmo tempo é a que tem mais condições socioeconômicas para empreender. O liberalismo, para o deleite dessa classe média, profetiza justamente a redução da carga tributária e também uma facilidade maior para abrir e gerir empresas. A segunda razão é a descrença nos políticos. Com todos esses escândalos de corrupção e incompetência dos governos, é tentador crer que menos políticos (ou menos Estado) seria a solução.
Outra conclusão que leva a esse pensamento liberal é a ideia equivocada de que o Estado é naturalmente corrupto, parasita e explorador. Por conta disso, as grandes empresas corromperiam o Estado para obter vantagens. Assim sendo, o Estado controlaria a economia de modo que esse controle favorecesse essas grandes empresas, prejudicando as demais concorrentes, evitando, assim, uma concorrência leal e justa. Isso é o que alguns liberais gostam de chamar de "corporativismo". Portanto, a solução para isso, segundo os liberais, seria reduzir os poderes do Estado e fazer várias privatizações. Isso seria necessário para que as corporações corruptoras não tenham como manipular nem o Estado e nem as estatais ao seu favor para gerar monopólios e oligopólios "legais". Apesar dessa ideia estar fundamentalmente correta, essa solução de "menos Estado" não funcionaria pelo simples fato de que os cartéis e oligopólios formar-se-iam do mesmo jeito, já que o Estado não teria força para regular as grandes empresas. Menos Estado é uma ideia que favorece à burguesia, à alta burguesia. Os trabalhadores e os pequenos e médios empresários não têm nada a ganhar com isso.



Com menos Estado e sem a interferência do mesmo no campo econômico, as empresas corporativistas nem precisariam gastar dinheiro para corromper os políticos a fim de manter os oligopólios. E assim viveríamos numa verdadeira ditadura corporativa. É inocente demais achar que num livre mercado as empresas que fazem cartel permitiriam que você ou qualquer um competisse contra elas, estragando seus negócios. Um exemplo disso é a mídia televisiva aberta. Quem evita a democratização da mídia são as poucas famílias que controlam as poucas emissoras de tevê – e não o Estado "malvadão". Seria muito mais interessante para o Estado ter uma mídia pluralista e democrática até para que ele tenha mais arrecadação de impostos, já que a grande mídia corporativa sonega impostos por eles serem proporcionais (ou altos demais) aos seus lucros. Empresas menores pagariam menos impostos e, por serem mais numerosas, elas aumentariam a arrecadação de impostos por haver menos empresas sonegando. O problema não é o Estado, mas o corporativismo que corrompe o Estado. Essa corrupção ocorre, principalmente, através do financiamento empresarial das campanhas eleitorais, de lobbys, de propinas, de jetons, de conchavos, de mensalões com dinheiro privado, de tráfico de influência ou de ameaças diretas mesmo.
O grande problema do liberalismo é que ele tem sido encarado como uma religião, como a única salvação para um sistema político e econômico cheio de falhas. Porém, o liberalismo é tão utópico quanto o comunismo. Ele é perfeito na teoria, mas teorias perfeitas não funcionam para seres imperfeitos, como nós, humanos.

Mais uma razão para regular o capitalismo

Solução
A melhor solução – que não por acaso vem da centro-esquerda – não é de aumentar ou diminuir o Estado, mas sim a de acabar com a corrupção do Estado para que ele não favoreça às grandes corporações, permitindo assim, uma liberdade econômica de fato. Claro que o Estado também não pode ser gigantesco e onipotente para não correr o risco de virar um capitalismo de Estado semelhante ao que acontece com Cuba. A diferença entre capitalismo de Estado e o capitalismo financeiro é que, no primeiro, o Estado oprime sozinho; já no capitalismo financeiro, o Estado se une à plutocracia para explorar eu, você, a direita e a esquerda. A diferença entre o fascismo/corporativismo e o socialismo/capitalismo de Estado é que o primeiro representa os ideais da burguesia, e o segundo representa os ideais dos parasitas Estatais. O que interessa mesmo para o povo é o bem-estar social, a justiça no trabalho e uma economia que possa dar a todos chances iguais. Por isso é necessário um equilíbrio de forças entre Estado e mercado. Qualquer extremismo neste sentido é autodestrutivo.
A grande cartada para que tudo dê certo é criminalizar e punir severamente todas as práticas corporativistas que mantém o poder e o oligopólio das grandes empresas privadas graças a corrupção do Estado. O Estado precisa ser forte, sim, e, principalmente, idôneo para que possa ocorrer, de fato, uma real e democrática liberdade econômica. Diminuir o Estado a um nível mínimo – como sonham os liberais – só serve para fortalecer ainda mais os oligopólios. Oligopólios estes que nada mais são que o tal jogo sem regras citado lá no início do post. O jogo de futebol precisa de regras, assim como o capitalismo também precisa de regras centrais para funcionar e ter sentido como modo de produção. A autorregulação do mercado é uma fantasia tão crível quanto a fantástica fada do dente. Não caiam nesse conto que é propagado pelos representantes das grandes corporações como se isso fosse salvar o país. O que salvará o país é o trabalho, a democracia e a honestidade.

4 comentários:

  1. Com menos estado, as empresas nem precisariam gastar para corromper politicos para manter oligopolios,só te digo uma coisa, hoje em dia temos pouquissimos bancos e o dinheiro mais caro do mundo( juros de emprestimos nos bancos) e coincidentemente é um setor hiper regulado com interferencia estatal, mesma coisa a internet aqui no brasil, temos pouca concorrencia e a uma internet pessima e hiper cara e temos extrema regulação estatal, coincidencia não? o problema nao é o estado, mas o corporativismo que corrompe o estado, vamos pegar um exemplo, quer dizer que seu te convenço a assaltar comigo voce é inocente e eu culpado por que fui eu quem te convenci a fazer isto mesmo com voce sabendo que isso também é errado?quer dizer que só eu devo ser punido e você não? E por ultimo deixo uma reflexão, todos os países liberais na economia e estado reduzido são muito ricos e com corrupção baixissima, ja paises de economia fechada e estado forte e grande são pobres(pra não dizer miseraveis) e com corrupção galopante.E sim, sou anarcocapitalista e minarquista também.

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    1. Mas é justamente aí que está o problema: o corporativismo com o aval do Estado corrupto. Se o Estado não fosse corrupto, a discussão se ele deve ser grande ou pequeno seria irrelevante. O problema não é o tamanho do Estado, mas, sim, a sua eficiência e a sua idoneidade. A regulação estatal serve, a princípio, justamente para proteger a liberdade de mercado: garantindo na constituição que ela deve ser respeitada. Mas vê se isso acontece no Brasil. Aqui o lobby faz com que nossas leis de mercado sejam somente "leis para inglês" ver.

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    2. não confunda o liberalismo clássico que e uma gestão social com o neoliberalismo que e uma gestão de mercardo

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    3. Gestão social é libertarianismo, e não liberalismo.

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